domingo, outubro 18, 2009

22 de Outubro - Do Baú das Crónicas

Arroz Doce

(Honkytonkyxungadandy Tale)


Não gosto do Bairro Alto à noite. Não frequento o Frágil, nem os Três Pastorinhos, nem a Ocarina. Quando muito dou uma saltada aos bem mais proletários B'Artis e Gráfico's; quando tem que ser, quando a saudade de velhos amigos começa a apertar, quando se fazem planos para uma nova revista, ou uma nova fita, ou uma nova revolução. Revista, fita, revolução que nunca se levantam daquelas mesas. Que nunca passam do primeiro esboço e, afogadas pelo álcool, não chegam sequer ao editorial, à premissa dramática, à tomada da RTP. Ir a estes sítios do Bairro Alto, à noite, é também uma forma de cansaço. Amargo como o absinto, denso e escorregadio como o fumo de centenas de SGs.

De dia é diferente. No Bairro Alto há um saber antigo, um outro fado e uma outra luz. É lá que existe um jornal que abandonei há muito tempo, um Conservatório em que se afundam as minhas últimas pretensões académicas, uma casa que faz bolos comunitários à maneira da Primeira República. É lá que estão as tascas que eu amo: numa delas está sempre uma mulher muito gorda em frente de um tapâruére com muito arroz e alguns carapaus; noutra estão sempre uns velhos debruçados sobre tarôts mágicos e lambidos; em outra ainda algumas putas sorvem Trinaranjus por palhinhas cor de púrpura, como o bâton, como o segredo. E nada disto é xunga. Xunga é o resto.

E há o Arroz Doce. De todas as tavernas é a minha preferida. Porque tem o descaramento de abrir algumas horas antes dos bares de gente decente, de atafulhar o estômago dessa gente com líquidos que custam o que custa a chuva, de reservar o direito de admissão (está lá, está escrito!) e admitir, sem reservas, a permanência de cadastrados e vadios, chulos e andebolistas, punks e técnicos de informática, no estabelecimento. É a minha preferida porque deita, clandestinamente e à sucapa, a língua de fora ao Frágil, ali, mesmo em frente, mesmo nas suas barbas. Nas tardes dos dias de semana a porta do Frágil está sempre escancarada, deixando ver um bocado de cortina surrada e um espelho oblíquo; muitas grades de Carlesberg espojam-se, a seu lado, no passeio; da janela do primeiro andar pingam collants, cuecas e ceroulas. O Frágil mostra-se, expõe-se, despe-se. É quase obsceno.

O recato, esse, mora do lado de lá da rua. Quem passar ali pela primeira vez não dá com o Arroz Doce, não pode imaginar o que existe do outro lado das paredes azuis. Do exterior não se ouve um som, não se vislumbra uma silhueta, não se imaginam os beijos e os risos. Ou a sua falta. Lá dentro há poucas mesas, uma juke-box quase estoirada, uma máquina de preservativos vinda dos anos 50. Há um retrato brejeiro do Segismundo Freud coroado com uma mulher nua e a legenda "What's in a Man's Mind". E uma velha fotografia habitada por pessoas agora conhecidas; aqui mais novas, a vestir pior, a sorrir descansadamente para o fotógrafo. Uma delas já morreu, de automóvel. Outra parece que foi para Bruxelas, ou Estrasburgo ou outro sítio qualquer. Uma terceira anda a escrever cada vez pior. É dos pós modernos.

No Arroz doce só há café de saco. E poucas canções na juke-box. A franquista 'Viva España', as tretas do Marco Paulo e os gargarejos do Freddy Mercury são as mais procuradas. Mas, à tarde, também há quem escolha canções de Amália e Leonard Cohen esfolando as mãos à cata da moeda marota que não marcou o código à primeira. Nunca marca. Os números mágicos parece que são o C5, C6, F1 e F2. Mas não tenho a certeza. De certeza, sei que anda por lá uma bebida de nome ordinário e com sabor a lumpen e a lúpulo. Chama-se Pontapé na C... e é feita à base de cerveja preta e de outros aditivos vindos da Lisnave. É muito boa e a mais concorrida. Hips.

Uma vez deu na televisão o Dínamo de Kiev-Benfica. O Arroz Doce estava cheio às seis horas. É raro. Eram as meias-finais. Um amigo meu que é maluco, e benfiquista dos oito costados ainda por cima, passou o tempo a torcer ruidosamente pelos soviéticos. Só para chatear. Durante a primeira parte fomos metralhados continuamente com olhares homicidas. No intervalo os lampiões esforçaram-se por acertar com beatas acesas e cascas de tremoços na nossa cerveja. Na segunda metade do jogo as coisas acalmaram: o Benfica estava a ganhar e só nos apercebemos de algumas naifas marotas que espreitavam dos bolsos das calças. O pior foi depois, quando o meu amigo disse que até o Curraleira F.C. conseguia jogar melhor que o Benfica, cujos jogadores andavam todos doentes do pékexuta. Tive que o salvar do linchamento iminente jurando por N. Sra. dos Aflitos que ele era filho do cônsul da URSS em Lisboa. Discuti com ele, admoestei-o violentamente, disse-lhe, aos berros, 'zdrástvuidie', 'pajólsta', 'dasvidânha' e todas as palavras russas que me vieram à cabeça. Os convivas pareceram ficar convencidos. Um deles chegou mesmo a dizer que tinha muito prazer em conhecer-nos, enquanto nos media o cadáver de alto a baixo. Saímos dali a assobiar a Internacional e o hino da CBS, perdão, do Glorioso.

Só voltei ao Arroz Doce muitos meses depois; cheio de saudades e vergonha. E de barba crescida. Tive vontade de oferecer um ramo de rosas à dona. Mas ela não ia entender. Ainda por cima parece que os rapazes novos chamam agora Estrela Azul (ou o que raio é) à taverna. Não faz mal. Nada mudou. E nada será como dantes. Porque o Arroz Doce não é xunga. Xunga é os outros.


António Pires


Nota do colectivo do 'Blitz': O nosso colega A.P., coitado, anda a ler Sartre, Mao, Baptista-Bastos, Martin Amis e 'O Independente'. Tudo ao mesmo tempo e por atacado. Tinha que se ressentir. Ainda por cima é do Barreiro. Desculpem-no lá, sim?


Blitz, 7 de Fevereiro de 1989

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2 Comments:

Blogger AnaGF said...

Bela crónica. E o arroz doce também tem bom aspecto...

8:43 da manhã  
Blogger fungaga said...

Eh pá, de repente, senti-me em 1989... quando ainda de dizia eh pá... obrigada!

6:55 da tarde  

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