terça-feira, março 03, 2009

3 de Março - Do Baú das Crónicas

in horta das vespas

A Aventura da Estrada

A estrada portuguesa é um lugar muito estranho. Quando os peritos da Comunidade cá vierem para uniformizar os nossos veículos é provável que deixem de acreditar, boquiabertos à beira da estrada, de lápis tremelicante na mão, no sonho europeu. São inclassificáveis. São insectos raros. Tropicais. Exóticos. Nada europeus. Se calhar começaram por ser europeus. Têm nomes europeus como Sachs e Zundapp. Mas, como tudo em Portugal, acabam por ser portugueses. E acabar é mesmo a palavra certa.
Como pode estar a Europa preparada, por exemplo, para aceitar no seu seio sofisticado aquelas motorizadas cobertas, metidas a minicarripanas, que zunem como mosquitos lunáticos pelas nossas vias a uma velocidade máxima de 35 quilómetros por hora? Que perversa lógica, ou patética necessidade ou magalomania leva um povo inteiro a pegar numa reles motorizada e a querer transformá-la em nada menos que um camião?
Os portugueses condizem estas viaturas dum modo furioso, todos dobrados por cima do 'guiador', com o nariz encostado à campainha, como se estivessem ressabiados, como se se quisessem vingar do facto de não terem um veículo mais decente. Como estas carripetas transportam cargas ridiculamente pequenas - uma bilha de gás ou duas grades de cerveja é o limite - os proprietários são obrigados a trabalhar seis vezes mais do que as outras pessoas. Devem ser quem mais trabalha por essa Europa fora, estes homens pequenos, de casaco de malha roxo e capacete de tijela, agachados de braço e de perna, acelerador torcido até doerem os pulsos, enervando-se cada vez que lhes parece uma subida pela frente, sabendo que a máquina pode não dar para tanto. E zangam-se quando se olha para eles. Não gostam de ser vistos.
Qual é o sonho destes sofredores? Comprar uma Toyota Hi-Ace. É a obsessão das classes trabalhadoras deste país. Adoram a elevação absurda do assento. Sentem que 'presidem' ao trânsito. São senhores. Os ligeiros, Porsches e Ferraris, rastejam-lhes debaixo dos narizes. Passaram a vida numa carripeta, a dez centímetros do chão, com as abas do capacete a baterem-lhes à volta das orelhas ensurdecidas (porque é que os trabalhadores nunca apertam os capacetes?). Com cada percurso, com cada grade de vasilhame ou quilo de jornais velhos que conseguem entregar, pensam 'só faltam seiscentos e trinta contos...'. Até ao dia em que ascendem a um Ford Transit ou a uma Bedford. E no dia em que para lá entram, nunca mais saem.
Vivem famílias inteiras dentro de carrinhas. Por isso é que se chamam utilitários. A família portuguesa costuma transportar-se de triciclo ou de camioneta, sempre ao relento, de costas para o condutor, sentados aos três e aos quatro de cada vez, a olhar para os automóveis que vêm atrás, entediados ao ponto da paralisia. Geralmente só a mulher e o filho mais novo, talvez por serem mais preciosos, envergam capacete. Quando se dá a aquisição da carrinha, mudam-se para o luxo de uma estrutura metálica coberta, onde seis indivíduos adultos se podem sentar confortavelmente à volta duma mesa e comer dois ou três cabazes de pataniscas. No Verão, em lugares como a Praia da Consolação, constituem-se gigantescas metrópoles de ford Transits, com avenidas estreitas entre veículos, restaurantes, casas de jogo e lojas. Os romenos, para meter medo às crianças e aos estrangeiros, têm os condes da Transilvânia. os portugueses têm os proletários da Transitlândia.
As carrinhas são a vingança das carripetas. As carripetas não dão mais que 35. As carrinhas andam sempre a 160. As carripetas fazem um cagarim estridente. As carrinhas são silenciosas, permitindo-lhes aproximar-se pela calada e pelas costas e congelarem-nos o sangue nas veias com a buzina. Pior que isso só as motoretas de fabrico nacional, chamadas Casalinho ou Fameli ou coisa que o valha, com que os jovens operários empreendem a luta de classes, oprimindo os tímpanos da burguesia. Como não são velozes, o moços compensam a falta de perigo com maneiras originais de condução, como andar aos ésses, haja ou não haja trânsito. Conduzem de pernas escancaradas, com as biqueiras dos sapatos rigidamente apontadas para o macadame, metendo mudanças como quem dá pontapés a gatos. Desto modo vão conseguindo atroplear-se.
Os homens da CEE nunca hão-de perceber o nosso parque automóvel. Há perguntas irrespondíveis. (O que é que quer dizer 'Galucho'? Está escrito na parte de trás de metade das camionetas nacionais.) Embora não haja propriamente automóveis portugueses, à parte aqueles triciclos (lá está outra vez) que se chamam Setubalenses ou Setubalinhos ou não sei quê, o nosso parque está mais nacionalizado do que muitos.

Miguel Esteves Cardoso, O Independente, 14 de Outubro de 1988

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