terça-feira, janeiro 06, 2009

6 de Janeiro - Do Baú das Crónicas

O meu cotidiano

Quando eu era menino sentia cócegas no corpo inteiro. O que está de acordo com a idéia da psicanálise de que, no início, o corpo inteiro é órgão sexual. Todo toque me excitava. As cócegas são uma ereção da pele. Aí a velhice chegou, e a libido encolheu. Hoje só sinto cócegas na sola dos pés.
Coisa muito próxima das cócegas são as coceiras. De todas, a mais deliciosa é a coceira do bicho, a "tunga penetrans". A "tunga penetrans" vive na proximidade dos chiqueiros e se aloja nos dedos do pé dos humanos formando uma bolha que deve ser extraída com uma agulha.
Dói um pouco pra tirar, mas os dividendos são enormes: a coceira que se segue se assemelha a um orgasmo. Uma jovem das antigas, virgem, preocupada com a noite de núpcias, perguntou à mãe: "Doí muito? A mãe, sábia, respondeu: "É como bicho de pé. Dói no início, mas depois você não quer parar de esfregar..."
O problema com a coceira é que ela dá tanto prazer que a gente coça até sangrar. Quem já teve frieira sabe o que estou dizendo. O que nos dá uma pista para entender os mecanismos do masoquismo: a dor misturada com o prazer.
Para mim o humor da política é igual à coceira da frieira: provoca prazer, mas faz sangrar. O riso do humor político nasce de um sofrimento. Nunca rimos tanto! Nunca sofremos tanto!
Essa imagem me veio quando comecei a pensar sobre minhas atividades de escritor. Um amigo me sugeriu tomar as notícias políticas como tema das minhas crônicas. Isso até pode acontecer, de vez em quando. Mas o fato é que as notícias políticas não me excitam, não fazem cócegas na imaginação. Só consigo escrever quando alguma coisa me produz cócegas na alma. Isso quer dizer que não é possível escrever um artigo por encomenda. De vez em quando atendo a pedidos. Mas artigo por encomenda sai sofrido, sem leveza.
Acontece que o cotidiano dos jornais não é o cotidiano da minha alma. O cotidiano dos jornais é feito de coisas importantes, universais, que aparecem nas manchetes: juros, corrupções, guerras, esportes. Mas o meu cotidiano é feito de coisas irrelevantes que, freqüentemente, só eu percebo. São as coisas sem importância que me fazem cócegas. Já escrevi sobre a pipoca, sobre as dentaduras, sobre o cuspe, sobre o tênis e o frescobol, sobre as cebolas. Como escrevi? Não sei. A imagem simplesmente me fez cócegas, e eu fui obrigado a escrever.
Como me aconteceu faz uns dias. Eu estava a ponto de entrar no Bem-Bom, restaurante onde cozinha uma Babette chamada dona Sônia, quando fui parado por dois jovens sorridentes e bem vestidos. Passaram-me um panfleto. Pensei que fossem mórmons à procura de mais um converso.
Li a primeira frase do panfleto. Fiquei horrorizado com o que li: "O senhor quer ler um livro em 20 minutos e entender tudo?" Faziam propaganda da leitura dinâmica, minha arquiinimiga. O palhaço que mora em mim entrou no picadeiro. "Ler um livro em 20 minutos? Isso é invenção do Demônio! Os senhores quereriam ouvir a Nona Sinfonia em 20 minutos? Quereriam ler "Grande Sertão: Veredas" em 20 minutos? Caminhando assim em breve teremos cursos de sexo dinâmico em que tudo se consuma em cinco segundos, à semelhança dos galos e das galinhas, economizando assim um tempo precioso para o trabalho! O prazer quer gozar devagar... É preciso ler bovinamente, ruminando... E agora os senhores me oferecem um método que vai me roubar dos meus prazeres?"
Foi maldade minha. Eles ficaram a me olhar, perplexos. Certamente acharam que eu era doido... Não sem uma certa dose de razão. Afinal de contas usei o meu precioso espaço para falar sobre o meu insignificante cotidiano que a ninguém interessa...

Rubem Alves, Folha de São Paulo, 21 de Fevereiro de 2006

Ilustre Blog Convidado da Semana:
Abencerragem

Etiquetas: