terça-feira, dezembro 09, 2008

9 de Dezembro - Da Arca dos Faits-Divers



Vilarinho das Furnas: O Passado À Tona da Água
Vilarinho das Furnas era uma aldeia especial, com uma extraordinária vida comunitária. Mas esse facto não impediu a sua 'imolação' em nome do progresso. Nos anos 70, o Homem dominava a Natureza e construía no rio Homem mais uma barragem dos sistema Cávado-Rabagão. O enchimento da albufeira fez desaparecer a aldeia.

Agora a Natureza 'vingou-se'. Um Outono pouco chuvoso e o nível da albufeira desceu 31 metros abaixo do normal. Vilarinho das Furnas reapareceu. A aldeia mantém ainda intactas muitas das suas casas de granito, mas os seus hábitos de vida comunitária, esses, desapareceram naturalmente com a dispersão dos seus habitantes por várias localidades. O espírito, todavia, subsiste e é corporizado através de uma associação de ex-moradores que se propõe agora recuperar a fauna e a flora do monte comunitário que as águas pouparam e que ainda é seu.

'Parece uma romaria a quantidade de gente que tem vindo até cá nos fins-de-semana para ver as ruínas de Vilarinho.' A frase é de um comerciante de S. João do Campo, freguesia vizinha de Vilarinho, e retrata o interesse quase místico que é dedicado à antiga aldeia comunitária. Para esse comerciante, e para muitos outros, o reparecimento de Vilarinho das Furnas tem sido a tábua de salvação em termos económicos. O Outono frio e seco que tivemos não trouxe ainda a neve a esta zona integrada no Parque da Peneda-Gerês. E a neve é uma das atracções suplementares do Parque nesta época baixa do ano. Em contrapartida, a falta de chuva faz descer o nível da albufeira e reaparecer Vilarinho das Furnas. Por isso o negócio do sr. João Pereira da Silva, com a sua residencial e restaurante em S. João do Campo, não se ressentiu. Há muita gente que quer conhecer ou rever uma aldeia de facto especial. Até que as águas voltem a subir.

Da outra margem da albufeira dificilmente se vislumbra Vilarinho das Furnas. A lama tornou a aldeia uniforme, quase da cor das margens. É preciso avançar, atravessar a barragem e depois andar a pé uma boa meia hora para a observarmos de perto. Uma aldeia construída em granito há muitos, muitos anos, na margem do rio Homem. Quando foi submersa contava com 67 casas. Muitas delas estão intactas, apenas sem os tectos de colmo. As paredes teimam em manter-se de pé.

Nesta aldeia, agora vazia e visitada apenas pelos garranos selvagens do Gerês, germinou um regime comunitário sui generis, muito próximo da democracia representativa, que sobreviveu à ditadura do Estado Novo. Vilarinho das Furnas tinha legislação própria, baseada no Direito Consuetudinário, e elegia de seis em seis meses um conselho restrito de anciãos (Os Seis) presidido pelo zelador. Todos respeitavam escrupulosamente a lei e aqueles que a infringissem sujeitavam-se a penas pesadas, que podia ir até à expulsão. Ser expulso significava não ser considerado para a execução das tarefas colectivas, ser votado ao ostracismo (ninguém lhe falava) e não receber ajuda em caso de necessidade.

Rosa de Jesus tem 63 anos bem marcados na pele do rosto. Viveu em Vilarinho e agora arrasta-se em São João do Campo. Conta-nos histórias, já mal lembradas: a de um vizinho que depois de expulso da comunidade teve de se arrastar ensanguentado até casa, depois de uma queda, porque todos se recusaram a dar-lhe ajuda. Conta-nos também as tarefas colectivas, a mais importante das quais era apascentar os rebanhos no monte comunitário. Rosa de Jesus não foi agora rever a sua aldeia, tal como o não fizera em 1979, altura em que a aldeia ficou à vista devido a obras na barragem. 'Éramos como bandos de pitos, sempre a seguir a mãe galinha; agora estamos todos separados', explica-nos.

Mas Rosa de Jesus tem saudades da sua aldeia, dos seus costumes e, segundo ela, da sua vida farta. 'Ainda me lembro das maçãs das malhadas e das do S. Miguel' - recorda.

Mesmo assim, com estas saudades, Rosa de Jesus não vai rever a sua aldeia. E como ela há muitos. Estão espalhados por localidades próximas ou emigrados. Refizeram a sua vida com as indemnizações que receberam da Hidráulica e não querem recordar outros tempos, outra vida. Esta recusa aplica-se sobretudo aos mais velhos, porque os mais novos estão agora com projectos que sublimam o perdido espírito comunitário.

Em 8 de Dezembro, grande parte dos ex-moradores de Vilarinho reúnem-se para comemorar Santa Conceição. Fazem-no todos os anos na sede do museu, construído com o acervo de coisas da aldeia, na freguesia de S. João Do Campo. Mas ao longo do ano há outras reuniões promovidas pela associação - A Furna. Às vezes vão até ao monte comunitário, poupado pela subida das águas, e tratam de assegurar a qualidade da sua delimitação. É precisamente nesse monte que A Furna deposita agora os seus projectos. Presidida pelo professor universitário Manuel Antunes, apresentou na CEE um projecto de recuperação da fauna e flora da região, que prevê o repovoamento de espécies extintas e a reintrodução no monte da cabra do Gerês, do corço e do veado. Segundo informações que colhemos junto da Câmara de Terras do Bouro, o projecto foi muito bem aceite em Bruxelas e mereceu mesmo uma menção honrosa. Caso se concretize, ele corporizará o velho espírito comunitário das gentes de Vilarinho das Furnas.

Uma aldeia desaparecida, cuja memória não será manchada pela construção de grandes empreendimentos na região. De acordo com o presidente de Terras do Bouro, José Araújo, há agora um bom entendimento com a direcção do Parque da Peneda-Gerês e a certeza de que não serão autorizados quaisquer projectos que ofendam aquela área protegida. Foi o caso de um empresário algarvio que idealizava para as margens da albufeira a construção de um aldeamento. Quanto à hipótese de criação de um parque de campismo, a cargo de A Furna, na área do seu monte comunitário, José Araújo é menos taxativo, mas acrescenta que nem 'poluição visual' aceitaria. Tudo isto para que as paredes de Vilarinho das Furnas, de novo emersas, não se arrependam uma vez mais do seu sacrifício. Em nome do progresso.


José Cruz, O Jornal, 27 de Janeiro de 1989



Ilustre Blog Convidado da Semana

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1 Comments:

Blogger fantasma said...

Que bom ser convidada de tão ilustres palavras :)
Bjos

10:22 da manhã  

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