terça-feira, dezembro 02, 2008

2 de Dezembro - Do Baú das Crónicas



A única dobragem aceitável é a do Cabo da boa Esperança. Desta arte se justifica que encarecidamente implore ao semanário SE7E a suspensão do inquérito ora em curso, o mui celebrado, mui polémico e mui descabido 'Dobragens na TV: Sim ou Não?'. Não é por mais nada: é que esta é uma daquelas questões para as quais não há alternativa, não há concílio a fazer, não há controvérsia, não há pachorra. A menos que a este inquérito sucedam outros de igual cariz: 'Apanhar com uma ogiva nuclear em cima: Sim ou Não?'; 'Exterminar à paulada os bebés-foca da calote ártica: 'Sim ou Não?'; 'Gostaria de ser seropositivo: Sim ou Não?'; 'Restabelecer o Santo Ofício: Sim ou Não?'; 'Acha que o Opus Pistorum deveria ser adoptado como livro de leitura do 1.º ano de escolaridade: sim ou Não?'; 'Considera que as sentenças de Salomão, mormente aquela que propõe a degola do nascituro em caso de maternidade dutosa, devem ser consagradas no Direito Penal: Sim ou Não?'; 'Atentados ao Sumo Pontífice: Sim ou Não?'; 'Vagas Terroristas: Sim ou Não?'; 'O Klaus Barbie era um bom rapaz. Se não concorda rebata a afirmação, mas com cuidadinho para a gente não se chatear'; 'Massacre de Inocentes: Está nessa?'; 'Bater em pessoas portando óculos: Oui ou Non? (está em francês, porquanto é um exclusivo do Nouvel Observateur)'; 'Esterilização indiscriminada da população sexualmente activa: Concorda ou talvez Não?'; 'Torturas Dantescas: é pró ou nem por isso?' 'Inferno ou Paraíso: qual a sua opção?'...
A dobragem (apoiado, Herman José, apoiado!) inspira náusea. Para a dobragem só há uma resposta: é Não, é Non, é Nein, é No, é Niet, é 'nem penses nisso senão nem sei que te faço.' A dobragem não é, como o pretendem as falanges nihilistas do inimigo, um serviço prestado aos nossos compatriotas analfabetos: é o método mais seguro e eficaz de propagação do analfabetismo. Se não fosse, porque não substituir também a imprensa escrita por uns arautos todos medievos, de gibão e cara ensebada, treinados para percorrer o País real declamando o notíciário do dia e incluindo pelo meio, para aligeirar o serviço, uns dixotes tirados ao Gil Vicente e ao Tolentino? Não seria isto também zelar pelos iletrados? E, já agora, porque não deixar as literaticces aos cónegos, aos monjes de Cister e às irmãs noviçase irmos todos em demanda do Graal prà Terra Santa? Melhor ainda, recusar a escrita? E os hábitos dos úmios, não eram bons hábitos? Regressemos às árvores, catemos parasitas, deixemos o pêlo alastrar e o cerebelo diminuir. Dobremos a espinha à civilização! Sejamos primitivos! Hgh! Umma-Gumma! Brhaa! (estes três últimos termos que grunhi resumem a minha opinião sobre a dobragem, mas precisam de ser dobrados...)
E digo mesmo mais: não está certo alegar que o recurso à dobragem daria sustento aos nossos flagelados actores. Um actor é um actor, costuma andar pelos proscénios, conhece de nome um tal Strindberg, põe tinta nas feições, é capaz de mimar a corcunda de Ricardo III ou a voz de falsete de um Gebo helénico, paga a quota para o Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, costuma ser exuberante no trato diário... se calhar já ninguém se lembra disso. Se calhar já a ninguém ocorre que um actor e um 'dobrador' (passe o termo) são profissões mais que distintas. A televisão só tem de empregar actores se fizer seriados ou Noites de Teatro. Façam-se Noites de Teatro. Ninguém deseja que os actores vivam à míngua. Mas também ninguém deve desejar que a RTP acarrete com as culpas da 'crise do teatro', da 'ausência do público', do colapso súbito e pentacentenário que vitimou o dramaturgo Shakespeare ou da excessiva demora do malandro do Godot... Se a RTP teimar nas dobragens, ainda põe a Irene Cruz a dobrar o Marlon Brando, O João Mota a dobrar a Marilyn, o Mário Viegas a dobrar a Pia Zadora, os miúdos que entraram na versão teatral do musical Annie a dobrar o Lawrence Olivier e a Greta Garbo, a Amélia Rey-Colaço a dobrar os miúdos na versão fílmica do Annie, sendo isto uma tragédia de proporções tais que se imporia instaurar governamentalmente o Estado de Calamidade, pedir à NATO para restaurar a ordem, mandar vir os restos do déspota Salazar para pôr cobro à desordem, sovar os responsáveis e deportá-los para o longínquo degredo. Podem crer que me custa a dizer isto, mas é verdade: a dobragem é um crime. Os prevaricadores devem ser punidos. Prevaricadores pró degredo! Prevaricadores, Go Home! (já que querem tanto dobrar, que dobrem isto).
Enfim, esta questão não tem assunto nenhum. Se ainda há alguém que concorde com a 'dobragem' que imagine vestida em português a deixa de Lauren Bacall a Humphrey Bogart em To Have and To Have Not ('Se precisares de mim, bufa... sabes bufar, não sabes?... Põe os beiços juntos e assopra'), se discordam de mim façam o favor de reconsiderar porque sou eu que tenho razão. Aliás, se dependesse da minha pessoa, acabava-se já aqui o inquérito, fazia-se disto a posição oficial deste semanário, a RTP, amedrontada com o quarto poder que o SE7E representa recuava e finava aqui a questão. A Bem da Nação.


João Miguel Silva, SE7E, idos de oitenta


Ilustre Blog Convidado da Semana:

Etiquetas:

1 Comments:

Blogger miguel. said...

muito obrigado ana, sendo assim os meus dois blogues já foram os ilustres convidados da semana...

o outro é o silêncio dos livros

mais uma vez, muito obrigado

miguel

3:18 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home