terça-feira, dezembro 16, 2008

16 de Dezembro - Do Baú das Crónicas

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A Aventura Interior

As pessoas perguntam-me com frequência porque é que deixei de usar cuecas. A razão é simples. Nos últimos tempos, ainda fiz um esforço para me habituar aos calções, apesar de ser difícil encontrá-los sem coelhinhos, foices e martelos, ou chupa-chupas. Mas são ridículos e pouco masculinos. Por isso é que ficam bem às raparigas. As raparigas acham uma certa graça aos calções, mas não é por serem sexy - é por inspirarem ternura. De facto, ao olhar para um homem adulto e peludo à hora do deitar e verificar que enverga calcinhas do My Little Pony, é impossível resistir a uma pontinha de comoção. Mas é a única pontinha possível.
Alguns calções chegam a ser desprovidos de abertura vertical, obrigando o utente a manobras de moçoila-do-campo, profundamente martirizantes para o frágil ego masculino. Nenhum homem gosta de arriar as calças só para fazer chichi. É como uma pessoa ter de se despir toda para tomar um comprimido.
Antes dos calções, havia umas coisas ainda mais ordinárias chamadas slips ou tangas. Também não eram masculinas - eram iguais às cuecas das raparigas, só que as cores eram mais nojentas, como roxo, cor-de-laranja ou cor-de-carne. Eram demasiado elásticas e constrangiam o estilo natural de um rapaz.
Os únicos homens que as usavam eram electricistas e veraneantes de rio: os Tarzans da Cruz Quebrada e de Algés. Durante os anos 70, os fabricantes conseguiram convencer os homens que estas cuequinhas de trapezista faziam arfar o peito feminino. Na verdade, as mulheres sempre se riram das cuecas dos homens tal como lhes têm sido apresentadas ao longo dos tempos, sobretudo se forem acompanhadas exclusivamente por sapatos pretos e peúgas. (Fiquem avisados, homens que gostam de usar calças largueironas: nunca, mas nunca tirem a camisa e as calças antes de descalçar meias e sapatos. A visão pode prejudicar de uma vez por todas a líbido da sua namorada ou esposa.)
A meio dos anos 80 houve um relâmpago de bom senso. Em Manhattan subiam enormes cartazes, fotografados por Bruce Weber, em que aparecia um homem normal com umas cuecas normais. Biliões de homens suspiraram de alívio. Obrigado, Calvin Klein. As cuecas normais são brancas, têm a fachada em ipsilon e cobrem adequadamente as nádegas sem apertá-las (como fazem os slips) ou deixá-las abandonadas ao relento (como fazem os calções).
O problema é que em Portugal não há cuecas da Calvin Klein. Há cuecas tradicionais, fabricadas em sítios sólidos como Braga e Guimarães, mas, em termos sociais, são investíveis. E porquê? Porque as cuecas portuguesas, devido a algum trauma religioso ou a 48 anos de fascismo ou lá o que é, são sempre de gola alta. Puxa-se um pouco pelo rebordo e as cuecas chegam-nos aos sovacos. Não pode ser.
É um flagelo nacional. Passo horas a olhar estupefacto para as linhas de roupa das famílias portuguesas. Quem é que pode possivelmente usar aquelas cuecas que parecem pára-quedas? É como as camionetas da palha. Porquê, santo Deus? Onde estão os seres humanos que obrigam o rabo e as pernas a viver naquelas gigantescas tendas de campismo que são as nossas cuecas a secar ao sol? Onde é que se fabricam aqueles tamanhos? Nalgum estaleiro?
Como país, temos as cuecas erradas. Merecíamos outras? Já não sei. O problema estende-se a toda a roupa interior. Mais uma vez, as linhas de roupa continuam a ser uma fonte importante. Como os caixotes de lixo (o que não aprendíamos se fôssemos a estudar os interiores!), as linhas de roupa mostram-nos o que se passa debaixo do colarinho. Não é uma imagem reconfortante.
Já se sabe que nós os portugueses, como raça, não arrumamos bem a roupa no cesto. Basta fitar as linhas de roupa dos nossos vizinhos, cheias de ceroulas a enfunar ao vento, estranhas cintas com apetrechos de pesca e soutiens da Securitas, reforçados à prova de bala. Chegamos à conclusão que temos, tal como Trás-os-Montes, um grave problema de interioridade.
A peça que mais me perplexa e que me vejo incapaz de explicar aos observadores estrangeiros que me procuram é a combinação. O que é? Para que serve? É para dormir? É só para aparecer em filmes italianos dos anos 50? Não, a combinação é uma coisa que não se compreende. Até o nome. Porque é que se chama assim? O que é que combina, ao certo? Se houve alguma antiga combinação, feita nos primórdios da nacionalidade, entre a Dona Urraca e a sua aia, de que as lusitanas haviam de usar um estranho vestido entre a roupa interior e o vestido, porque é que não fomos informados?
Ou será uma versão moderna do cinto de castidade, protegido por uma espécie de código de abertura, complexo sistema de presilhas e ganchetes como a combinação de um cofre? Em vão recorremos às páginas de lingerie da 'Elle', asseguradas por Eduardo Prado Coelho, mas verificamos que ele só combinou escrever sobre sapatos de salto alto e alcatifas. Se nem a crítica especializada nos vale, quem é que nos vai acudir?
Uma consulta preliminar aqui na Redacção não produziu grandes resultados. 'São para não ter frio', diz a Maria Eugénia. O Manuel Falcão diz apenas, com ar de quem sabe mais do que diz, que 'são óptimas'. Óptimas porquê? O que é que me estão a esconder? O que é que tenho andado a perder estes anos todos?
Nem falo nas outras coisas que espantadamente verifico nas nossas linhas. Nada direi sobre os estranhos saiotes de nylon, que se calhar se chamam meias-combinações, que as mendigas vestem por cima das calças de sarja para ficar com um ar ainda mais miserável. Nem tão pouco uma palavra sobre as camisolas interiores, com fantásticas propriedades térmicas, se calhar forradas a amianto ou recheadas com aparas de pêlo de marta, que os nossos chefes de família adquirem com o cartão Maconde e vestem debaixo da camisa ao jeito de fato de Super-Homem.
A questão das peúgas não a abordarei e sobretudo aquelas de pêlo turco, sempre azuis-turquesa ou cor-de-carne. Não farei qualquer referência às cuecas das senhoras, apesar da preocupação que me causam. Abafarei de bom grado a minha perplexidade face aos materiais usados na confecção das ditas, nomeadamente no que diz respeito à incompreensível popularidade da flanela. Registo apenas que me parece incompatível com a nossa pretensão de povo integrado na Europa. Num clima como o nosso, a insistência mórbida em cobrir os nossos atributos com quilómetros de flanela há-de sair-nos cara.
Deve haver muitos rapazes como eu, que reagem a este estado de coisas desistindo de usar cuecas, pijamas e peúgas. Não havendo dinheiro para comprar as cuecas do Sr. Klein, é melhor andar à mercê dos elementos, sofrendo as correntes de ar que se nos sopram pelas bainhas das calças acima e morrendo de vergonha nos gabinetes de prova quando o alfaiate espreita para perguntar se as calças sempre assentam bem, do que estar a colaborar no genocídio erótico da nossa população.
A roupa interior portuguesa foi concebida por pescadores da Nazaré e secretários do Santo Ofício em conluio com os mercadores de panos de Famalicão, e nós temos a obrigação de nos revoltarmos. Porque não formar um partido - o Partido Bem Trajado Estético e Nacional - com a sigla PBTEN? PBTEN também tem a vantagem de significar Por Baixo Estou Todo Nu. Abaixo as cuecas nacionais.

Miguel Esteves Cardoso, O Independente, 7 de Outubro de 1988

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A Dobra do Grito

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2 Comments:

Blogger fantasma said...

Fantástico. MEC, claro :)

12:38 da tarde  
Blogger Purpurina said...

Hilariante!

5:06 da tarde  

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