terça-feira, novembro 04, 2008

4 de Novembro - Do Baú das Crónicas

(Nota da Gerência: Não sei porque a guardei. Devia estar a penar com uma paixoneta qualquer. Mas hoje serve para ilustrar um estilo muito cultivado nos anos 80/90: o tipo-MEC. Acontecia aos melhores.)
O Amor e a Paciência
Há um velho ditado português que já foi contaminado pelo bolor. Dizia ele, a quem o queria ouvir: quem espera sempre alcança. Mas não há nada mais falso. Afinal, quem espera nunca alcança. No amor, então, o elogio da paciência é uma ciência que vem de longe, e que tantos danos mentais tem causado nos apaixonados de hoje. Desde sempre os mais velhos instruíram os mais novos (o Amor não é nenhuma lei escrita, é uma lei natural que passa de ouvido para ouvido) que todas as formas de concretizar o desejo se resumiam a duas estratégias melosas: a teia de aranha e a canção do bandido. Hoje, sabendo-se que essas duas estratégias estão em saldo nas boutiques ciganas que passeiam por este país, elas são conhecidas como a tareia da aranha e a canção do lixado. Não percebem? Eu também não.
Sempre me explicaram, desde pequenino, que desde que Adão desejou petiscar Eva, para poupar a maçã para a sobremesa, que o amor é uma questão de paciência. Disseram-me então, como voz académica, que quando pedinchamos a paixão, passamos a vida a esmolar. Elucidaram-me também que não há dinheiro que compre a paixão e não há paixão que não se cumpra pagando em lágrimas. O problema é que não se combate a paixão com vacinas. E afinal o Amor é um caso curioso, quando renegamos tudo por isso. Imaginamos que nos amam (e aí até as melhores videntes se iludem com o que os seus olhos querem ver) e comportamo-nos como tontinhos em busca de um quilo de juízo (algo que não está à venda nos hipermercados). Suamos do coração e soamos falsos. A Mata Hari dos nossos olhos deixa cair um lenço no chão e quando, como cavalheiros do acaso e cavaleiros do ocaso, nos baixamos para o apanhar, ele dá-nos um pontapé no rabo, dizendo: Pensas que isto é Impulse da televisão? Não é, também me explicaram isso quando eu era pequenino. Mas eu nunca aprendi. E se calhar agora já é tarde para tudo isso.
Um psiquiatra brasileiro disse há alguns tempos que Sexo é um pouco de fricção e muito de fantasia. É capaz de ser, mas a parte suculenta da questão sempre foi, ao contrário do que muitos supõem, antes de os lençóis terem sido entreabertos. é essa fase da teia de aranha de que me falavam quando eu era pequenino e que agora El Debarge, com a sua voz melosa, explica em Real Love, uma canção que fala dos tortuosos caminhos do Amor. E da dor. Mas como eu tentava fazer desaguar para estas linhas as ideias que me incutiram, sempre insistiram que a paciência no amor é a nossa melhor arma para se conseguir o fim pretendido: a sobremesa que Adão se esqueceu de comer.
A estratégia da teia de aranha é a coisa mais simples do mundo - quado se encontra, numa qualquer rua, a paixão dos nossos próximos 15 minutos, devemos movimentar-nos em círculos concêntricos ao longo do tempo que for preciso, em volta da pessoa amada. O único problema é que às vezes ficamos tontos de amor e caímos no chão que nem uns perdidos. Nesse jogo a paciência é importantíssima. Se elas nos olha, nós olhamo-la fixamente, tentando perceber se ela não tem nenhum cisco no olho. E às vezes descobre-se que aquele olhar foi apenas uma questão de ramelas. O certo é que muitas vezes fica-se preso dessa loucura apaixonada que acaba por ser a ditadura dos nossos dias. E aí a teia de aranha acaba por se transformar na tareia da aranha.
Os mais experientes também me instruíram na canção do bandido, as frases certas que um ouvido incerto sempre gosta de ouvir, antes que algo de menos musical possa acontecer. A canção do bandido sempre foi o Bolero da imaginação, o corredor sem fundo da nossa imaginação, que nos ata, como o melhor índio, à estaca da idiotice. Afinal, num mundo de walkmans, já só cai na canção do bandido quem quer. E por isso com o correr das estações ela se tornou a canção do lixado (para não dizer outra coisa). Foi por tudo isto que inventaram o Dia dos Namorados, que é o dia em que todas as canções do bandido são aquecidas em fogo lento, como se fossem futuras pipocas, para adoçar a língua do nosso coração. O estômago tem sempre razões que a paixão se esforça por desconhecer.
Afinal, no amor, tudo acaba em postas de pescada, porque estas estratégias são tão modernas como os Brontossauros. Quem se move com elas acabará por morrer no deserto. Esmolando um amor que nunca lançará uma moeda para nos fazer sorrir o coração. E quem continuar a apostar nestas estratégias acabará por perceber que a paciência é, ao contrário do que se diz, o nosso pior defeito. Ficamos dependentes dela. E nunca mais ficamos independentes.
Fernando Sobral, Expresso, 23 de Maio de 1989

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