terça-feira, novembro 18, 2008

18 de Novembro - Da Arca dos Faits-Divers



De Mãos na Água


Riem-se dos anúncios da televisão em que o estrago de uma cafeteira entornada é apagado com um mergulho da toalha num banho de pós modernos. 'Vai-te embora, mentirosa!', dizem estas mulheres de braços molhados para quem é ponto assente a superioridade da ancestral ciência da água e do sabão. Mas já são poucas e carregadas de anos as lavadeiras de Lisboa. No grande lavadouro das Francezinhas, só metade dos tanques continuam a ser utilizados.

Há quem tenha passado vezes sem conta naquela esquina onde começa a Madragoa, no ponto em que a Rua das Francezinhas encontra a Travessa dos Pasteleiro, sem suspeitar que, por detrás das paredes ocres, sobrevive o maior lavadouro colectivo de Lisboa. São doze grandes tanques rectangulares, com bordas de lajes inclinadas, agrupados três a três. Ali, entre a roupa disposta em montes ou estendida em arames e varais, resiste ainda, na repetição de gestos que o tempo não alterou, um ofício incrustado na memória da cidade.

Mãos gretadas e mangas arregaçadas, aventais e plásticos presos com cordas e alfinetes, botas de borracha e línguas soltas, elas são as últimas e sabem-no. 'Isto tem passado de mães para filhas, mas agora as novas têm vergonha de cá vir.' Recordam tempos, ainda há quarenta e tal anos, em que os tanques não chegavam para as lavadeiras, era necessário esperar vez e deixar o lugar marcado quando iam almoçar. Hoje são só oito 'afectivas' as que lá vão todos os dias, chova ou faça sol, e quase nunca se juntam mais de 14 mulheres à volta dos tanques.

A Deolinda 'Preta', de 79 anos e desde os 12 a bater a roupa com os punhos ou a malha de pau, ou a Maria Jacques, continuadora, aos 75 anos, de uma arte que sua mãe, já no último decénio do século passado, praticava no mesmo local, lembram-se de muitas coisas e confundem outras. Sabem, por exemplo, que devem o lavadouro das Francezinhas a um impulso de caridade da rainha Dona Maria Pia, embora não consigam precisar a data da fundação, 1852. Recordam os tempos em que as lavadeiras saloias, de Caneças e Loures, chegavam em grupos à cidade, em carroças ou camionetas, de trouxas à cabeça, para dar a volta às freguesias certas. Mas é também de outra espécie o seu saber: 'Há roupas que estão mais sujas do avesso do que do direito.' Vaidades e aparências valem pouco para estas mulheres.

Têm um riso fácil que se mistura ao marulhar das águas, ao estalar das pancadas na roupa molhada, ao raspar incansável das escovas, uma música que aqui se sobrepõe ao rumor abafado da cidade, visível encosta abaixo, até ao rio. Mas, mesmo poucas, não desmerecem os pergaminhos de gerações inteiras, e por vezes o riso ou a conversa sobre a vida alheia dão lugar a ralhos e zangas em que vai tudo raso: 'Quando nos engalinhamos, dizemos tudo, é dos alhos às azeitonas.' Passada a tempestade, disciplinada a prevaricadora que queria lavar a roupa escura nos tanques da roupa branca ou pôr na água passadeiras e fatos-de-macaco sujos de óleo antes da uma da tarde, voltam a ser 'como uma família'.

E há as cantigas, marchas da Madragoa preferidas , ou outras antigas, em que as palavras já são roídas por esquecimento. Lambram-se de ter ouvido muitas como esta:

'Ó amor, que queres tu?
Eu quero roupa lavada
Vai à tua lavadeira
Que eu não sou tua criada'

Unanimidade faz a Beatriz Costa e a canção que imortalizou as lavadeiras no cinema: Ai bate, bate...' É uma das suas devoções.

Mas outras há, como as que se apresentam num nicho da parede, 'oratório ' em que cumprem particulares à Senhora de Fátima, de Santa Luzia, do Padre Cruz, do Santo antónio e do doutor Sousa Martins. Questões privadas de saúde, felicidade e fortuna, mas também rituais colectivos: o Santo António e a Senhora de Fátima foram adquiridos em conjunto, por alturas do 25 de Abril, 'para haver paz no mundo e sossego para todos'. E mais conta Vanilde Mendes, 'capataza' do lavadouro: 'Por causa da guerra do Golfo chorávamos aqui, no dia em que constou que a guerra tinha acabado viemos logo acender velas e chorar, ai minha nossa senhora, ainda bem que os nossos filhos não vão.'

Homens aqui, nem pensar. 'Isso é que era bom, isto é nosso!' Têm fraca ideia dos que tentam entrar, bêbados ou vadios. E não vão em modernices: lambram-se daquele turista espanhol que, acompanhando a mulher, tentou ajudar na lavagem; foi terminantemente proibido. 'Nesta água só mãos de senhoras', e está tudo dito.

Clientes têm-nas certas, onde vão buscar a encomenda da semana à segunda-feira, outras há que aparecem no lavadouro e ali apreçam o trabalho, como esta que chega, deixa uma trouxa de roupa pela qual pagará 500 escudos daí a oito dias e é troçada em colectivo mal se vai embora. As clientes são, para as lavadeiras, 'elas': 'Elas acham caro', 'para elas lavar faz mal às mãos, algumas calçam luvas.'

Aqui é tudo à mão, sabão escuro ou azul e branco, dependendo do gosto da obreira: desde o mais barato - um par de meias por cinco escudos, uma camisa vinte, calças entre trinta e quarenta, 'conforme elas vêm' - até aos lençóis, que podem chegar aos cem escudos sendo de casal e grandes, cobertores entre duzentos e trezentos, e a obra mais difícil que poucas máquinas fazem - carpetes, que requerem muita força de braço e o trabalho de duas mulheres, podem chegar ao conto e quinhentos.

'Já não se sabe lavar como dantes.' A opinião é definitiva e recolhe assentimento geral. 'Olhe para algumas janelas, que a roupa mete nojo. Parece o pano da casa.' Gostavam de passar a arte e por isso não se furtam a ensinar algumas 'cachopas' que aparecem, raramente, a pedir explicações.

A velha barrela para a roupa branca, que se fazia 'com a cinza dos padeiros e a porcaria das galinhas, há mais de cem anos', foi substituída por um banho com um pó. No resto, a ciência não mudou: roupa branca para um lado e de cor para outro, em alguidares a sabonária de um dia, com a velha potassa para a sujidade mais teimosa, um tanque para ensaboar e outro para passar por água. Nas lajes gastas, esfregam e batem a roupa ensaboada, depois há que 'passar como deve ser', primeiro com as peças bem abertas, dobrando com cuidado antes de cada novo mergulho, aprontando o tecido para ser 'bem torcidinho' antes de ir para o arame. Há segredos no pendurar as camisolas 'como deve ser, para não ficarem pingonas' e, finalmente, até nisto existe saber: 'Tudo tem o seu tempo a enxugar'.

Quem isto aprendeu não acredita em máquinas. 'Não há nada que chegue às nossas voltas', e a prova são as freguesas que tantas vezes lhes trazem peças acabadas de sair dos tambores metálicos. Ainda assim, desta luta está traçado o vencedor, as baixas não enganam. Mesmo se as lavadeiras de Lisboa ganharam uma batalha no final do século passado, quando, em 1884, para consumir o excesso de água canalizada do Alviela, a Companhia das Águas decidiu montar uma 'lavandaria-modelo' para 30 mil peças diárias, com o último grito em maquinaria e um técnico francês; foi tal a anarquia e a confusão que o público se desinteressou, o técnico desistiu de entender os portugueses, os prejuízos acumularam-se e a empresa acabou por ser vendida em 1903.

Provado está que não há como mão de lavadeira para afagar um colarinho. E por isso, mesmo queixando-se Deolinda de que 'quando me deito à noite não posso mexer este bracinho', no lavadouro das Francezinhas a opinião é unânime: 'Se isto fecha, a gente morre abismada.'

Frederico Carvalho, Expresso, 23 de Março de 1991

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