terça-feira, outubro 07, 2008

Terça-feira, 7 de Outubro: Do Baú das Crónicas

Que Fazes por Aqui, ó Gato?

Começo eu a dar ao teclado e eis Mafalda a saltar para cima do monitor e a repimpar-se lá. Está agora sentada, circunspecta, com as orelhas enfiadas no quebra-luz do candeeiro e a cauda a tornear as patas da frente. Pisca os olhos, de vez em quando, como se estivesse a saborear as delícias de praias soalheiras, que ela, lá no seu íntimo, configura. Sou-lhe completamente indiferente, embora me arrogue dono e senhor dos aparelhómetros e possa cortar-lhe, a meu talante, os regalos caloríficos. Mafalda levanta agora uma pata, lambe-a, e não me liga absolutamente nenhuma, se bem que pareça olhar, vagamente, na minha direcção. Assim são os gatos. Estão-se nas tintas para a gente. Ainda não averiguei se os gatos dos outros têm a mesma mania de se instalar em cima de monitores e aparelhos de televisão. Esta é assim desde pequena. E bem posso falar-lhe, soprar-lhe, fazer-lhe gaifonas, que apenas condescende em fitar-me superiormente, com um profundíssimo desprezo.

Chama-se Mafalda e é uma siamesa de cinco anos que cresceu pouco. Talvez seja anã, se é que o nanismo dá nos felinos. O nome ocorreu quando ela veio cá para casa e havia leitura abundante das bandas desenhadas do Quino. Mafalda era faceira, metia-se em cestos, perseguia tudo o que mexesse, atirava arranhadelas certeiras quando contrariada, de maneira que a contestatária do Quino veio a calhar para nome que se houvesse de dar ao bicho.

Só por isso, porque eu sempre detestei o hábito de pôr nomes de gente a animais. Lembro-me de que uma vizinha tinha um spaniel chamado 'Sebastião', e que era desagradável ouvi-la admoestar 'ó Sebastião, ó Sebastião' quando o bicho se portava mal. Em tempos, um amigo meu teve uma gata, excessivamente vadia e sarrafeira, a que chamava 'Noronha' e que andava sempre caminho do veterinário, depois de furibundas e sanguinolentas guerreias que atroavam os telhados do bairro. No meu íntimo, acho que um gato se deve chamar honradamente 'Tareco', ou coisa assim, e que 'Piloto' não é mau nome para cão. Mas não sou eu quem decide estas coisas e há sempre pressões que me alteram os propósitos. Sabem como é. Também nunca consegui ter o automóvel encarnado dos meus sonhos consumistas. Já os tive verdes, azuis, amarelos, beringela, mas encarnados é que nunca havia nos stands quando os quis. São contingências da vida. Já estou conformado a que o próximo carro me saia cinzento ou preto. O gato seguinte não sei como se chamará, mas desconfio que hão-de confluir perversidades que me impeçam de lhe chamar 'Tareco.'

Noutro lado, provavelmente enrolada debaixo duma mesa, suspeito que com uns restos esquirolados em cima do tapete, sisuda medita Milu. É uma cadela pêlo-de-arame que tem a particularidade de só se exprimir a rosnar: a Milu quer ir à rua? Rosna. Quer ir para a varanda? Rosna. Discorda de qualquer indicação dos donos, ainda que branda e justíssima? Rosna. E mais rosna quando alguém se aproxima dois metros do prato dela, ou quando um inocente chama o elevador lá nos baixos do prédio. Consegue mesmo rosnar quando está a dormir - mecanismo que nunca esclareci - dissuadindo quem lhe queira perturbar o sossego. Acho que ela já percebeu que se faz entender bem assim e que os humanos se conformam a uma linguagem de rosnidos. Perspicaz, hem?

Eu é que ainda não me conformei com o facto humilhante e tenebroso de Milu ser a única cadela do mundo que morde nos donos. Nunca foi maltratada nem especialmente mimada. Não têm aqui cabido as teorias psicológicas dos traumas infantis. a Milu sempre foi posta no seu lugar com aquela sensata mistura de firmeza e condescendência que leva os demais canídeos a sentirem-se infinitamente reconhecidos para com os seus donos. Aliás, a outros respeitos, parece-me gozar de uma razoável saúde mental. Mas deu-lhe para ser assim. Ferra com convicção. Não com força bastante para britar ossos, mas com o poder de persuasão suficiente para que tenhamos de pensar duas vezes na forma de a agarrar para lhe dar um banho.

Este nome de Milu, ao contrário do que almas escandalizadas possam julgar, não foi maneira de fazer pirraça, ou homenagear, alguma criatura chamada Maria de Lurdes. Aconteceu que a cadela, quando veio cá para casa, era muito parecida com aquele cão filósofo do Tintin, que tem o mesmo nome, ainda que, por qualquer esquisitice própria das francofonias, Milou, lá, funcione no masculino. Mais uma vez me veio uma banda desenhada crismar os bichos domésticos. Mafalda e Milu, competentemente, dão-se como o cão e o gato, ou seja, bastante má, com vénia à consabida sabedoria popular. Milu domina e prepondera nos chãos até à altura de quarenta e cinco centímetros; daí para cima, quem faz a lei é a Mafalda, senhora absoluta de prateleiras, tampos de mesas, altos de sofás, topos de electrodomésticos, e de todos os píncaros e abismos caseiros, como poder de vida e de morte sobre os objectos a que habitualmente se chama bibelôs. Os acasos da vida fazem que haja zonas de fronteira que exigem mediação enérgica dos gatos e cães mais poderosos lá de casa, que somos nós: trata-se da tépida área abrangida pelos caloríferos, e da zona, ainda mais problemática, onde se encontram as comidas e os equipamentos necessários ao conforto animal. De vez em quando, devido a movimentos mal calculados, estala uma zaragata que parece do fim do mundo, mas que acaba sempre da mesma maneira: Milu desfaz-se em rosnidos, que na altura atingem quase os decibéis do roncar leonino, Mafalda liga uma espécie de sirene de bombeiro, entremeada de jactos de mangueira de alta pressão, enovelam-se os dois giratoriamente, e tudo acaba em bem. Mafalda dispara a fugir e Milu corre inutilmente, porque nunca a consegue alcançar. Aliás, mesmo se conseguisse, seria, creio eu, suficientemente sábia para se atrasar, calculando milimetricamente aquela distância táctica que lhe poupa os pêlos do focinho a uns contactos agudos. Está assim estabelecido, são leis lá deles e nós já nem precisamos de intervir. A previsibilidade é total. E como os animais não têm - poupados que foram pela natureza - prosápias de originalidade, a cena repte-se, dia após dia, sempre nos mesmo e exactos moldes, sem que daí venha grande mal ao mundo.

Curiosamente, tanto Mafalda como Milu, embora entendoras de algumas expressões como 'toma!', 'banho!', 'cs,cs!', 'bsh, bsh!', 'rua!', 'dá!', 'sape!' e de outros sinais de forte conteúdo semiológico (a abertura da porta do frigorífico, o rangido do abre-latas nas ditas, o sacudir dumas caixas de duras matérias alimentícias, o rancoroso olhar do dono quando nota que um sofá proibido está ainda quente...), recusam-se a compreender os apelos à concórdia mesmo quando minuciosamente explicados.

'Minhas caras, não há razões para zaragatas, há espaço para as duas junto do radiador, e, aliás, quem manda aqui somos nós' são declarações que as deixam estranhamente indiferentes, se não é que arreganham mais a dentuça da Milu e arqueiam exponencialmente o lombo eriçado da Mafalda. Já desistimos de fazer discursos aos animais. Limitamo-nos, com gestos mínimos e fleumáticos, a prevenir os estragos.

Mafalda mantém um comportamento conservador, atendendo àquilo que se espera dos gatos. Milu é a mais inovadora e tenta imitar a outra, contra a natureza. Se o salto da Mafalda para um colo é um 'zap' aveludado, tão subtil que quase não se nota, já o salto plagiado da Milu é um 'Catrapuz!' desajeitado que amolga as calças e comprime os estômagos. Em contrapartida, Milu parece distinguir bem a mão, que lhe faz festas, do colo que a sustém, coisa que eu não garanto que aconteça com Mafalda. Não raro, sinto um inconfessáfel despeito quando vejo Mafalda instalada nos joelhos dos meus amigos. A Milu nunca faz isso. Rosna-lhes e morde-lhes.

Em dado momento, de surpresa, apareceu-me em casa o Gastão. O Gastão é preto, com malhas brancas e tem uns ares afadistados, muito fiados na musculatura, se bem que não seja mau tipo. A minha filha mais velha trouxe-o dum centro comercial em que uma loja benemérita oferecia gatinhos. Deve ter achado que aquilo era um bom negócio. O bicho, muito orelhudo e trangalhadanças, passou a chamar-se Gastão, não por causa do amigo do Sandokan, nem do que era perfeito na cantiga do Zé Afonso, mas porque estavam a ter grande êxito cá em casa os álbuns do Gaston Lagaffe, proprietário dum gato igual. Quando cresceu e começou a ter uns ademanes suspeitos para com a Mafalda, aliás hostil, foi despachdo para outra casa familiar. Continua a ser um grande amigo da Milu (em contravenção do anexim), mas, cá por coisas, deixou de ter notícias da família.

Creio ter exposto com clareza as razões por que os meus bichos, a contrapelo, têm nome de gente. Antes que alguém pergunte. Ficam para amanhã as menções aos hamsters, tartarugas japonesas, pássaros, peixes, grilos e ouriços cacheiros que me passaram cá por casa.

Mário de Carvalho

Público, 5 de Março de 1993

Ilustre Blog Convidado da Semana

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3 Comments:

Blogger pikenatonta said...

Ai ai!!! Esta é a "minha" semana aqui no teu blog? Obrigada!!! :))

Um beijinho enorme para ti! *

3:17 da tarde  
Blogger fungaga said...

Muito obrigada, este senhor é sempre um prazer garantido!

3:26 da tarde  
Blogger vibarao said...

Concordo com o cronista: Sebastião não é nome para cão! Nem qualquer outro nome de pessoa! Eu, que sou Sebastião, já tive muitas arrelias na via pública, porque agora tornou-se moda chamar os cães pelo meu nome. Porque é que cada um não dá ao cão o seu próprio nome?! Assim, quando assobiava, ralhava, admoestava e ameaçava o cão em lugares públicos, não estava a ofender terceiros.

4:20 da tarde  

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