terça-feira, outubro 28, 2008

28 de Outubro - Da Arca dos Faits-Divers



Rushdie: A Religião das Palavras
Rushdie, o autor de Os Versículos Satânicos, é 'um morto que caminha', declarou aos jornalistas o embaixador do Irão no Vaticano, Salman Ghaffari. Seria difícil encontrar sítio mais apropriado para uma declaração tão friamente assassina. E Ghaffari prossegue com a incontinência verbal dos alucinados: 'Rushdie é o instrumento de um complot contra os Islão. Nesta contenda, o Ocidente enganou-se ao entrar em confronto com mil milhões de muçulmanos. O Leste ateu mostrou maior respeito.' Já tardavam os agradecimentos públicos de um governo teocrático pela compreensão demonstrada por outro que diviniza a razão do Estado. Ao oportunismo do Executivo soviético corresponde a fragilidade dos seus opositores internos (criam-se os inimigos a que se tem direito). O semanário 'Notícias de Moscovo' publicou uma petição, assinada entre outros por Andrei Sakharov e pelo conselheiro de Gorbachov para as questões espaciais Roald Sagdaiev, em que se apela para a 'clemência' de Khomeiny: 'Um acto de clemência corresponderia aos preceitos de Jesus e de Maomé.'
Uma verdadeira 'Internacional' dos fracos parece ter-se formado com a eclosão deste caso. O antigo presidente dos Estados Unidos da América, Jimmy Carter - o mais tímido dos governantes norte-americanos, que foi outrora enxovalhado como ninguém pelo Irão - considerou Os Versículos Satânicos 'um insulto directo a milhões de muçulmanos, cujas crenças sagradas foram violadas.' Não percebendo que o ayatollah é de facto apoiado pelos muçulmanos pobres - que nele vêem um vingador das afrontas que um mundo implacável lhe inflige - Carter preocupa-se com o embaraço que eles sentiriam perante a 'irresponsabilidade' de Khomeiny. Os escravos estão à porta da cidade, elegeram como chefe um Spartacus louco, e o velho imperador não sabe.
As tergiversações de um Ocidente aburguesado, cheio de má consciência, mais não fazem do que encorajar os novos inquisidores. Que o diga Geoffrey Howe, ministo dos Negócios Estrangeiros britânico: qualificar o romance de Rushdie de 'ofensivo' não evitou que o Irão, lançado num desafio crescente, cortasse relações com a Inglaterra. Mais vale ser temido do que amado, lembrava Maquiavel... É claro que expulsar trinta iranianos da Grã-Bretanha não mete medo a ninguém; eficaz seria interromper as importações de petróleo do Irão.
Uma espécie de sida moral parece estar já a tomar conta de algumas consciências: o prémio Nobel da Literatura de 1988, Neguib Mahfuz, depois de ter assinado um comunicado - com mais oitenta intelectuais árabes - em que era afirmado que 'nenhuma blasfémia prejudicava tanto o Islão como o apelo ao assassínio de um escritor', deu o dito por não dito e pede agora a proibição do livro, embora considere 'sagrada' a liberdade de expressão. Um prestidigitador. Não é o único, porém. A Organização da Conferência Islâmica - a decorrer entre os dias 15 e 16, na Arábia Saudita - tentou por todos os meios não se opor frontalmente ao Irão acerca do caso Rushdie, evitando no entanto apoiar a fatwa do imã. O problema foi remetido para a vaguíssima rubrica 'Estratégia Unificada de Informação Islâmica'. Provavelmente a Organização aconselhará os quarenta e cinco países que a compõem a deixar de importar livros da Penguin, a editora de Rushdie, mas o voto não será vinculativo.
'Merdifica-se' - exclama Yves Pascal, na revista francesa L'Express, a propósito de tanta hipocrisia.
Quem parece navegar com ligeireza no mar morto da confusão é o Grande Rabino da Grã-Bretanha, Emmanuel Jakobovits. Lançando fora a criança com a água do banho, propõe que se proíba quer a publicação de Os Versículos Satânicos, quer a difusão do apelo de Khomeiny ao assassínio. Este 'santo' homem, que gostaria talvez de ser Salomão, não passa afinal de Herodes. 'Eles falam do reino de Deus, mas dão dele uma ideia mesquinha e desprezível', comentava o autor latino Celso em Contra os Cristãos.
Norman Mailer propõe que os escritores façam aquilo que Isabelle Adjani muito corajosamente já fez: 'Iniciar todas as reuniões literárias com uma leitura das páginas críticas de Os Versículos Satânicos.' E Mailer insiste: Khomeiny ofereceu-nos a oportunidade de recuperar a nossa frágil religião, que consiste em crer nas palavras e estarmos dispostos a morrer por elas.' Esperemos que Neguib Mahfuz leve a sério o desafio de Mailer, e passe a respeitar mais o poder das palavras. É que, caso contrário, poderá começar a ser levado tão a sério como o italiano Vicenzo Strocchi, amador da obra de Dante. Strocchi enviou cartas assinados por pretensos Guardas da Revolução ao presidente da Câmara de Ravena e a um jornal local, ameaçando fazer explodir o túmulo de Dante porque este desrespeitava Maomé na Divina Comédia, remetendo-o para um local reservado aos traidores: 'Era uma brincadeira entre um pequeno grupo de especialistas.' Mahfuz é especialista em quê?
Em contrapartida, o escritor alemão federal Günther Grass não hesitou, como sempre: demitiu-se da Academia de Belas-Artes de Berlim Ocidental, porque os seus membros se recusaram a associar-se a uma leitura pública das obras de Rushdie. A humanidade justifica-se com gestos destes.
No Brasil, Os Versículos Satânicos serão publicados pela Companhia das Letras, editora de José Saramago e José Cardoso Pires, sendo a tradução utilizada a da Dom Quixote. Em Lisboa, o livro vai ser objecto de uma co-edição Dom Quixote / Círculo de Leitores, à semelhança do que tem acontecido com outras obras.
'A verdadeira essência, sem cor, sem forma, impalpável, não pode ser contemplada senão pelo guia da alma, a inteligência', concluía Celso.
Torcato Sepúlveda, Expresso, 18 de Março de 1989

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1 Comments:

Blogger miguel. said...

Muito obrigado, Ana, fico contente por gostar do silêncio dos livros e de ser o seu ilustre blog convidado da semana... já agora beba um bica no meu outro blog... www.ocafedosloucos.blogspot.com

abraço

H.M.C.

3:33 da tarde  

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