terça-feira, outubro 21, 2008

21 de Outubro - Do Baú das Crónicas


A Aventura de Sofrer
Em Portugal sofre-se muito. Eu sofri muito. Tu já sofreste muito. Só Deus sabe o que ele já sofreu. De resto, sofre-se muito neste País. O próprio país sofre. Sofre só por sim com ponto final. E sofre coisas exteriores a si. Sofre de dúvidas. Sofre quedas. De escadotes. De cabelos. Sofre alterações. Sofre cataclismo. Sofre de sucessivas. Sofre de chofre.

Esta afirmação sofre de contra-argumentação. Dir-me-ão que também se sofre noutros países. Sofre-se mais. Sofre-se melhor. A fome, a miséria, o senador Dukakis. Só que sofrem duma maneira diferente. Para começar, não gostam. Não gostam? É verdade! Como é que pode ser?

Há muito sofrimento no mundo. Isso é certinho. E como é que nós podemos ajudar? Nós quem? Nós portugueses. Pois ensinando-os, pois levando mais longe a nossa palavra, pois estendendo até lá nossa mão, para que aprendam a gostar de sofrer. A amolar. A tirar as devidas lições. É a lição portuguesa ao Mundo: sofrer é um método de aprendizagem. Sofer é viver. Sofrer é saber. Como elas mordem. O processo é simples. Um: elas mordem. Dois: nós damos um salto no ar. Três: ficámos a saber que elas mordem. Quatro: já nos podemos considerar mordidos, mas sábios. A rapaziada do Sudão e da Etiópia podia tornar-se na rapaziada a Sul de Lisboa e Faro.

Bleaaargh! A coisa que mais detesto nos portugueses é o culto do sofrimento. As pessoas sofrem e dizem que sofrer 'faz calo'. É repulsivo. Calo, por amor de Deus - porque é que alguém há-de querer fazer uma coisa dessas? Passam pelas maiores amarguras e em vez de tentar esquecê-las dizem que 'criou carapaça', que isso ajuda a enfrentar melhor as agruras. Qual carapaça, qual carapuça de campino. Que vantagem tem uma pessoa ficar casca-grossa, insensível, género rinoceronte de olheiras e perna de pau, desconfiado de térmitas e pica-paus?

Sofrer é uma coisa horrorosa. É igual àquilo que se sente. Quando uma pessoa está na merda é que vê o que o sofrimento é: uma merda. O sofrimento dá cabo das pessoas. Vira-lhes os cantos dos olhos e da boca. Torna-os inacessíveis aos encantos do mundo, que já são poucos. O sofrimento vexa, humilha, amarrota, estupidifica. O sofrimento é uma coisa que não se deve enfrentar. Não é um touro. Não é a CEE. O sofrimento é uma coisa de que se deve absolutamente fugir. É melhor sair da sala, abandonar o lar, beber uma garrafa inteira de rum, tomar comprimidos e drogas, do que sofrer. é o sofrimento que mata as pessoas.

As pessoas ficam amarrotadas quando sofrem. Quando encaram o mal, ficam piores. Não há nada mais triste do que ouvir alguém dizer, quando se está a propor alguma felicidade - uma paixão, um negócio, uma confiança: 'Sabe é que eu já estou muito queimado, já levei muita pancada...' Os portugueses, ainda para mais, orgulham-se disso. Quanto mais queimado, quanto mais porrada tenha levado, mais veterano de guerra, mais Kaúlza de Arriaga, herói de 20 campanhas se sente.

Os portugueses estão drogados com o sofrimento. São junkies da melancolia. Injectam-se com as próprias misérias e, quando estas faltam, com as alheias. Acham que o sofrimento faz bem à alma. Quando há uma tragédia, um incêndio, um terramoto, eles gostam de sofrer. Acham que merecem. No fundo, sentem-se todos culpados e adoram a oportunidade de ser castigados. Para um português, o castigo redime. O sofrimento alivia. Concreta a ansiedade. Enche o vazio. Dá um foco à errância desfocada da alma. Eu sei lá.

Há um culto da desilusão que é perverso. Existe a ideia de que toda a felicidade é 'uma ilusão' e que só se descobre 'a verdade' quando se sofre o desaparecimento dela. 'Afinal', - diz o português lacrimejante - 'tudo aquilo era mentira...' Nós, portugueses - desculpem lá - temos todos coração de sopeira. Por alguma razão a nossa palavra preferida é quimera. Quando nos apaixonamos, a primeira ideia que nos vem à cabeça é que tudo aquilo é mentira. E esperamos estupidamente pelo esclarecimento. Tanto queremos ser esclarecidos, tanto prevemos a desilusão, tanto temos a certeza do desenlace, que acabamos por preparar a nossa desgraça.

Ó portugueses! Escutem a voz da minha mãe! Ela é inglesa como o mais inglês e ama Portugal mais do que qualquer português. Tem um lema urgente: 'Não é o fim do Mundo'. Há quatro anos ardeu a minha casa, ela chegou lá, aos escombros que restavam e disse: 'Bem! Não é o fim do Mundo.' E não era. Nunca é. Para ela, uma tragédia não é um castigo. Não é sequer uma naturalidade. É apenas um azar. Sofrer é aturar o mundo quando ele está mal disposto. Não é compreensão, inteligência, sabedoria. É doença.

Nunca é o fim do mundo. O sofrimento marca as pessoas. Torna-as sofridas. 'It's not the end of the world', como diz a minha mãe. Nunca é. E quando for, não há-de haver ninguém para dizê-lo. (Aposto que há-de sobreviver um português, só por pirraça, para dizer: 'Foi o fim do Mundo! Estamos bem tramados!')

Sou totalmente cobarde no que toca ao sofrimento. Não aguento. Dói demais. Quero que se lixe. Nem quero pensar nisso. Sou visto como um irresponsável, um inconsciente, um garoto, um menino mimado por causa disso. Dizem que me falta o elemento trágico. Ó minha alma adorada, não é que me falte - eu é que não gosto de falar disso.

O sofrimento é um nojo. Tudo o que dói faz mal. Quando alguém se chega ao pé de nós e diz 'Passei a noite inteira a chorar por tua causa', a sensação é repressora, totalitária, indecente. O sofrimento dos outros dói mais do que o nosso. Encosta-nos à parede e chama-nos nomes.

Sofrer é feio. Em público ainda é pior. O sofrimento é uma doença, uma constipação da alma, uma coisa para esquecer. Temos o dever de nos alegrarmos. A nós próprios e uns aos outros. Isso é que é um dever. A sinceridade é uma coisa gratuita. Alegrarmo-nos é uma missão heróica. Quanto mais fingidamente, melhor.

Sorrir é mandar os cantos dos lábios parar o curso das lágrimas descendentes. A boca é uma barragem. O coração é uma coisa simples. Sofrer é ficar ferido. As cicatrizes são todas feias. É melhor não ser nada - é melhor não ser feliz - do que sofrer. É isso o que se pensa quando se respeita verdadeiramente o sofrimento.




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3 Comments:

Blogger Tanea said...

Incrivel como uma crónica com 20 anos continua actual, porque nós portugueses continuamos a adorar sofrer. Como se fosse o objectivo principal da vida, sofrer para sermos mais fortes. Não entendo, porque sou daquelas que tem alergia ao sofrimento e a tudo o que é ideia negativa e derrotista.

Somos o país do mais ou menos. Como estás? - Mais ou menos....
Como foi o teu dia? - Mais ou menos...

enfim... está no sangue

3:13 da tarde  
Blogger AnaGF said...

Gosto mesmo MUITO do MEC. Esta crónica não conhecia, obrigada por a pores aqui!

9:06 da tarde  
Blogger caracois said...

é pena ler-se com tanta dificuldade por causa do pouco contraste :-(

10:41 da manhã  

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