domingo, setembro 21, 2008

Domingo 21/09 - Do Baú das Crónicas

O Símbolo da Pátria

Suponho existir algures na Alta Califórnia um monumento ao nosso compatriota João Rodrigues Cabrilho, descobridor daquela costa, cerca de 1540, ao serviço dos Reis de Espanha. Porque, há 50 anos, Ferreira de Castro encontrou na arrecadação de uma vivenda em São Francisco, à espera de pedestal, a estátua do grande Cabrilho. Embora os proprietários só falassem inglês, eram seguramente de ascendência lusíada, deduziu o escritor, porquanto, aos pés do navegador, jaziam dependurados três grandes bacalhaus secos.
Nas suas deambulações 'À Volta do Mundo', Ferreira de Castro constatou, fosse Índia, China ou Malásia, que em toda a parte onde havia portugueses havia bacalhau. Não tenho experiência que se lhe compare, mas suspeito ser realidade.
Há-de haver 20 anos, passei algumas semanas em casa de uns emigrantes, nos arredores de Paris. Gente simples, hospitaleira, generosa, com imenso prazer em receber. Ainda assim, mandam os costumes retribuir, oferecer qualquer lembrança aos donos da casa. Mas o quê? Um arranjo de flores? Uma peça de cristal? Um perfume? Queijo da serra, vinho do Porto? Da sondagem exploratória só saiu bacalhau. Apreciadíssimo. Melhor que oiro! Porque a reserva das 'vacanças' estava esgotada.
Um belo domingo, nos Champs-Elysées, aguardando o final da Volta à França, cruzámo-nos com um possidónio em parlapié franciú, à criancinha traquinas: 'Chicô, viène ici, mon p'tit.' Qual nada, Chiquito continuava destrambelhado. 'Francisco, viène ici, se nom apanhas uma chapada dans les ventas', perdeu o papá a tramontana. 'Está a ver', piscou o olho, cúmplice, o meu anfitrião, 'têm a mania de finaços, mas são bacalhaus como nós.' Aprendi. Ser bacalhau era, na gíria da emigração, sinónimo de nacionalidade portuguesa, mesmo camuflando as origens.
Estou em crer que esta identificação teleóstea é congénita. Há portugueses que gostam de sardinha, outros não. Petinga, carapau, jaquinzinhos, feijoada, cozido, arroz de lampreia, açorda de sável, fado, Benfica, tintol, muitos alinham, alguns (poucos) nem por isso. Mas de torcer o nariz ao bacalhau não há memória, nunca vi. É assim: conforme crescemos, adquirindo cultura, organizamos o nosso (conceito de) mundo. Categorizamos o tempo, o espaço, os objectos, os afectos. E, naturalmente, os alimentos. Estes subdividem-se em carne, peixe e bacalhau; o resto são condutos, acompanhamentos. Quer dizer: para nós, portugueses, o bacalhau salgado, seco, com espinhas, é uma categoria dietética própria, que não é carne nem peixe. É bacalhau. Ao contrário do peixe, não tem aquela mão-de-obra lixada, tirar peles, separar espinhas. E, em sinergismo com a carne, dá energia, puxa carroças.
A exploração dos bancos de bacalhau da Terra Nova constitui uma revolução alimentar na Europa, entre os séculos XVI e XVIII. Ingleses, franceses, flamengos, bascos, portugueses, catalães, iam todos àquele maná atlântico, fornecedor de proteínas, alegria dos pobres - e também dos ricos, particularmente nos jejuns da Quaresma, durante os quais estava interditado o simples comércio de carne, aves e ovos. Mas as guerras, as convulsões sociais, o progresso, os frigoríficos industriais e, nos últimos anos, as águas territoriais, liquidaram a moda europeia do bacalhau seco. Menos em Portugal. Não nos deixam pescar? Importamos da Noruega. Chega congelado, inteiro? Ora, faz-se de conta que é fresco: descongela-se, corta-se às postas, salga-se e seca-se. Ainda que, logo a seguir, nas nossas casas, se demolhe e volte ao congelador.
Somos os maiores consumidores mundiais per capita de bacalhau. Não sabemos viver sem ele. Quando, há dias, a Noruega negociava a sua integração na U.E., obviamente o nosso bravo governo - todo ele educado desde pequenino a óleo-de-fígado-de-bacalhau - exigiu contrapartidas: um aumento de quotas de pesca. Foi um valente finca-pé, com a vitória a sorrir-nos. 'Ganhámos!', garantiu, orgulhoso, o ministro Durão Barroso. 'Portugal duplicou a sua quota de pesca.' Porreiro. Só que o dobro de nada é nada. Zero multiplicado por dois dá zero. Mas receberemos fundos estruturais para reconverter a frota bacalhoeira. Em sucata.
Contudo, de uma coisa estou certo. Dê por onde der, continuaremos fiéis ao bacalhau. Vendo bem, mais do que o hino, bandeira, quinas, castelos, esfera armilar, o bacalhau é o símbolo da pátria. Direi mesmo, é a pátria. Por isso, recomendo ao homem da Feira Popular que, se se quiser recandidatar à Presidência da República, troque o queijo da serra por bacalhau. Rapidamente. Porque o General Eanes, ora sem partido, decerto fará do bacalhau sua flâmula, símbolo, imagem e programa eleitoral. Fiel amigo. Seco, esticado, salgado. Para todos os gostos, com mil e uma maneiras de cozinhar. Irresistível. Cá para mim, voto nele.

Ricardo França Jardim, Público, 17 de Abril de 1994

Ilustre Blog Convidado da Semana

Etiquetas:

2 Comments:

Blogger fungaga said...

Acho que fiquei com fome... outra coisa, já não se clica em publicidade neste blogue? Eu já tinha esse tique automatizado...

7:28 da tarde  
Blogger Loca said...

E só hoje, agorinha mesmo que foi o ilustre blogue convidado da semana, obrigadita.
Ando com saudades das visitas a estes cantinhos mas parece qe não consigo fazer esticar mais os meus dias.
Bêjos
Obrigada.
:))

1:45 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home