sexta-feira, março 27, 2009

Adeus, Querida Tânia

foto: Loca-Bandoca

A Uma Rapariga

Abre os olhos e encara a vida! A sina
Tem que cumprir-se! Alarga os horizontes!
Por sobre lamaçais alteia pontes
Com tuas mãos preciosas de menina.

Nessa estrada de vida que fascina
Caminha sempre em frente, além dos montes!
Morde os frutos a rir! Bebe nas fontes!
Beija aqueles que a sorte te destina!

Trata por tu a mais longínqua estrela,
Escava com as mãos a própria cova
E depois, a sorrir, deita-te nela!

Que as mãos da terra façam, com amor,
Da graça do teu corpo, esguia e nova,
Surgir à luz a haste de uma flor!...

Florbela Espanca

10-10-1982
27-03-2009

Etiquetas: , ,

quinta-feira, março 12, 2009

12 de Março - Citação do Dia

in Jardim Botânico Tropical

Flor em Livro Dormida

Fechado, espalmado num missal é que eu me vejo,
como peça de herbário dum comércio amoroso
que há um século se travou entre Dom Brotoejo
e Dona Amélia Joana Cisneiros Monterroso.

Antepassados meus? Qual quê! Antepassados nossos,
que ao santo sacrifício levavam floretas,
trocavam os missais (Deus meu!, hoje são ossos...)
olhos nos olhos (... ossos nos ossos das comuns valetas?)

Mais que a letra, é o espírito que no livro procuro,
mesmo que seja só o levante da carne
duns pobres queridos que tranformavam tudo
- missa, missal, flor - em mensagens e secreto alarde!

Consumidores de livros, se quiserdes salvar
vossas almas - lombadas de bárbaros prosaicos,
tereis que, furtivos, procurar, folhear
uns quantos alfarrábios e, neles, encontrar
o herbário-mensagem dos amantes heróicos!

Alexandre O'Neill

Blog de Estimação:
Querida Snowshoee:

Etiquetas:

quarta-feira, março 11, 2009

11 de Março - Citação do Dia

Maria João Franco, um beijo de saudade

A saudade é isto mesmo; é o passar e repassar de memórias antigas.

Machado de Assis, Dom Casmurro

Blog de Estimação:
Querida Snowshoee:

Etiquetas:

terça-feira, março 10, 2009

10 de Março - Do Baú das Crónicas



Porque Sim

Fazer da cal o bilhete de identidade. Comer o primeiro u de Augusto. Às Marias chamar Bias. Petiscar ao fim do dia. Acreditar em Deus e no Partido Comunista. São coisas dos alentejanos.
Explicar Deus como 'alguém que manda nisto tudo'. Casar pela Igreja. Baptizar os filhos. Ser indiferente à missa. Não faltar à procissão. Desprezar a confissão. Chamar magana à morte. Dizer dos familiares que lhe morreram: 'o meu pai que Deus tem' ou 'a minha Joaquina que Deus tem'. Tirar o chapéu diante do cemitério. Crer em virtuosos (bruxos). Temer as trovoadas como os gauleses do Astérix. Benzer o pão antes de entrar no forno. Não derramar azeite. São coisas dos alentejanos.
Estar apaixonado quando está triste. 'Andar atrás de' quando está apaixonado. Chamar boda ao casamento e ao copo-d'água função. Anteceder os nomes dos filhos do pronome possessivo meu ou minha: o meu João, a minha Ana. Da mulher dizer apenas 'a minha', ignorando-lhe o nome. Não ter trambelho para os trabalhos domésticos. Enforcar-se quando se vê viúvo. São coisas doa alentejanos.
Ver cair a geada. Chamar charoco ao frio e busaranho ao vento gelado. Dizer que está aspereza quando há temporal. Ao sol chamar 'o astro' como se fosse o único no céu. Ao calor chamar calma. Viver com o Suão. Chamar às planuras descampados. Cerros aos outeiros. à floresta arvoredo.
Olhar o horizonte e saber ter vagar. Dizer: 'Estou à espera de me ir embora.' Declarar com solenidade: devagar que tenho pressa. Abalar no comboio da Cuba. A Lisboa chamar aldeia grande. Ter parentes na Brandoa. São coisas dos alentejanos.
Estar de roda do lume. Sentar no chão para conversar. Parar no largo ao olhinho do sol. Ter sempre a navalhinha petisqueira no bolso das calças. Condutar o pão, o vinho e a vida. Beber só em companhia. Cantar quando os outros também cantam. À seca chamar desgraça. Querer a barragem de Alqueva. São coisas dos alentejanos.
Porque sim.

Pedro Ferro, Público, 17 de Setembro de 1995

Blog de Estimação:
Querida Snowshoee:

Etiquetas:

segunda-feira, março 09, 2009

9 de Março - Citação do Dia

Melanie Fischer, Árvore

Há metáforas que são mais reais do que a gente que anda na rua. Há imagens nos recantos dos livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego


Blog de Estimação:
Querida Snowshoee:

Etiquetas:

sábado, março 07, 2009

7 de Março - Citação do Dia

O fascismo felizmente é estúpido, suficientemente estúpido e cruel para se devorar a si mesmo.

António Lobo Antunes, Os Cus de Judas

Blog de Estimação:

Etiquetas: ,

sexta-feira, março 06, 2009

6 de Março - Citação do Dia

He Tells Her

He tells her that the Earth is flat—
He knows the facts, and that is that.
In altercations fierce and long
She tries her best to prove him wrong.
But he has learned to argue well.
He calls her arguments unsound
And often asks her not to yell.
She cannot win. He stands his ground.

The planet goes on being round.

Wendy Cope

Blog de Estimação:
Querida Snowshoee:

Etiquetas:

terça-feira, março 03, 2009

3 de Março - Do Baú das Crónicas

in horta das vespas

A Aventura da Estrada

A estrada portuguesa é um lugar muito estranho. Quando os peritos da Comunidade cá vierem para uniformizar os nossos veículos é provável que deixem de acreditar, boquiabertos à beira da estrada, de lápis tremelicante na mão, no sonho europeu. São inclassificáveis. São insectos raros. Tropicais. Exóticos. Nada europeus. Se calhar começaram por ser europeus. Têm nomes europeus como Sachs e Zundapp. Mas, como tudo em Portugal, acabam por ser portugueses. E acabar é mesmo a palavra certa.
Como pode estar a Europa preparada, por exemplo, para aceitar no seu seio sofisticado aquelas motorizadas cobertas, metidas a minicarripanas, que zunem como mosquitos lunáticos pelas nossas vias a uma velocidade máxima de 35 quilómetros por hora? Que perversa lógica, ou patética necessidade ou magalomania leva um povo inteiro a pegar numa reles motorizada e a querer transformá-la em nada menos que um camião?
Os portugueses condizem estas viaturas dum modo furioso, todos dobrados por cima do 'guiador', com o nariz encostado à campainha, como se estivessem ressabiados, como se se quisessem vingar do facto de não terem um veículo mais decente. Como estas carripetas transportam cargas ridiculamente pequenas - uma bilha de gás ou duas grades de cerveja é o limite - os proprietários são obrigados a trabalhar seis vezes mais do que as outras pessoas. Devem ser quem mais trabalha por essa Europa fora, estes homens pequenos, de casaco de malha roxo e capacete de tijela, agachados de braço e de perna, acelerador torcido até doerem os pulsos, enervando-se cada vez que lhes parece uma subida pela frente, sabendo que a máquina pode não dar para tanto. E zangam-se quando se olha para eles. Não gostam de ser vistos.
Qual é o sonho destes sofredores? Comprar uma Toyota Hi-Ace. É a obsessão das classes trabalhadoras deste país. Adoram a elevação absurda do assento. Sentem que 'presidem' ao trânsito. São senhores. Os ligeiros, Porsches e Ferraris, rastejam-lhes debaixo dos narizes. Passaram a vida numa carripeta, a dez centímetros do chão, com as abas do capacete a baterem-lhes à volta das orelhas ensurdecidas (porque é que os trabalhadores nunca apertam os capacetes?). Com cada percurso, com cada grade de vasilhame ou quilo de jornais velhos que conseguem entregar, pensam 'só faltam seiscentos e trinta contos...'. Até ao dia em que ascendem a um Ford Transit ou a uma Bedford. E no dia em que para lá entram, nunca mais saem.
Vivem famílias inteiras dentro de carrinhas. Por isso é que se chamam utilitários. A família portuguesa costuma transportar-se de triciclo ou de camioneta, sempre ao relento, de costas para o condutor, sentados aos três e aos quatro de cada vez, a olhar para os automóveis que vêm atrás, entediados ao ponto da paralisia. Geralmente só a mulher e o filho mais novo, talvez por serem mais preciosos, envergam capacete. Quando se dá a aquisição da carrinha, mudam-se para o luxo de uma estrutura metálica coberta, onde seis indivíduos adultos se podem sentar confortavelmente à volta duma mesa e comer dois ou três cabazes de pataniscas. No Verão, em lugares como a Praia da Consolação, constituem-se gigantescas metrópoles de ford Transits, com avenidas estreitas entre veículos, restaurantes, casas de jogo e lojas. Os romenos, para meter medo às crianças e aos estrangeiros, têm os condes da Transilvânia. os portugueses têm os proletários da Transitlândia.
As carrinhas são a vingança das carripetas. As carripetas não dão mais que 35. As carrinhas andam sempre a 160. As carripetas fazem um cagarim estridente. As carrinhas são silenciosas, permitindo-lhes aproximar-se pela calada e pelas costas e congelarem-nos o sangue nas veias com a buzina. Pior que isso só as motoretas de fabrico nacional, chamadas Casalinho ou Fameli ou coisa que o valha, com que os jovens operários empreendem a luta de classes, oprimindo os tímpanos da burguesia. Como não são velozes, o moços compensam a falta de perigo com maneiras originais de condução, como andar aos ésses, haja ou não haja trânsito. Conduzem de pernas escancaradas, com as biqueiras dos sapatos rigidamente apontadas para o macadame, metendo mudanças como quem dá pontapés a gatos. Desto modo vão conseguindo atroplear-se.
Os homens da CEE nunca hão-de perceber o nosso parque automóvel. Há perguntas irrespondíveis. (O que é que quer dizer 'Galucho'? Está escrito na parte de trás de metade das camionetas nacionais.) Embora não haja propriamente automóveis portugueses, à parte aqueles triciclos (lá está outra vez) que se chamam Setubalenses ou Setubalinhos ou não sei quê, o nosso parque está mais nacionalizado do que muitos.

Miguel Esteves Cardoso, O Independente, 14 de Outubro de 1988

Blog de Estimação:
Querida Snowshoee:

Etiquetas: