segunda-feira, julho 31, 2006

31 de Julho - Citação do Dia

Ó tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar tuas mãos!,
E, beijando-o, descesse plos desvãos
Do sonho, até que enfim eu o encontrasse

Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra - reis cristãos
Ajoelhando, inimigos e irmãos,
Quando processional o andor passasse!...

Teu gesto que arrepanha e se extasia...
O teu gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncais...

Caverna em estalactites o teu gesto...
Não poder eu prendê-lo, fazer mais
Que vê-lo e que perdê-lo!... E o sonho é o resto...

Fernando Pessoa

Espertalhotes: papalagui, neptumância

Etiquetas:

domingo, julho 30, 2006

30 de Julho - Citação do Dia

Decerto há sempre que escrever. O que nem sempre há é motivação para escrever o que há, ou seja, interesse em explorar isso para ser coisa que se escreva.

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 3

Etiquetas:

sábado, julho 29, 2006

29 de Julho - Citação do Dia

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso.

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Espertalhotes: papalagui, loca, neptumância

Etiquetas:

quinta-feira, julho 27, 2006

27 de Julho - Citação do Dia

A maior de todas as crueldades e ao mesmo tempo a sua máxima perversão é a habituação do indivíduo a ela.

Manfred Wekwerth, Notas de Trabalho no Berliner Ensemble

Etiquetas:

quarta-feira, julho 26, 2006

26 de Julho - Citação do Dia

Nocturno

Noite,
noite velha
nos caminhos.
A lua no alto
fingindo-se cega.
Estrelas.
Algumas cairam ao rio.
As rãs
e as águas
estremecem de frio.

Eugénio de Andrade

Etiquetas:

terça-feira, julho 25, 2006

25 de Julho - Citação do Dia

Insensivelmente contraíra o mais delicioso hábito do mundo, o hábito da leitura: ignorava que construíra assim um refúgio para as amarguras das vida; ignorava também que estava criando um mundo irreal que transformaria o mundo real quotidiano numa fonte de cruéis decepções.

Somerset Maugham, Servidão Humana

Espertalhota: bikovska

Etiquetas:

domingo, julho 23, 2006

23 de Julho - Citação do Dia

Metralhadoras Cantam

Acenderam-se as armas pela noite dentro.
Quem rebenta? Quem morre? Quem vive? Quem berra?
Há um vento de lamentos nos lamentos do vento.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Cantam granadas a canção da morte.
E há uma rosa de sangue à flor da terra.
Morrer ou não morrer é uma questão de sorte.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

Cantam bazookas e morteiros e estilhaços
cantam esta canção de aço que não erra
no espaço do seu fogo entre dois braços.
Cantam metralhadoras a canção da guerra.

Há um tiro que parte. Há um corpo que tomba.
Nesta boca fechada há um morto que berra.
Quem estoira no meu peito? o coração? Uma bomba?
Metralhadoras cantam a canção da guerra.
Todo o tempo é uma batalha. Ataque. Fuga.
Fuga. Ataque. Silêncio. Um silêncio que aterra.
Que marca o rosto com o seu peso ruga a ruga.
Um silêncio que canta na canção da guerra.

Mina. Emboscada. Pó. Pólvora. Sangue. Fogo.
Acerta não acerta? Erra não erra?
Perdeu todo o sentido dizer-te até logo.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

Cada segundo pode ser o último segundo.
Como enterrar os mortos que a memória desenterra?
Há um poço tão fundo tão fundo tão fundo.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

Há um soldado que grita eu não quero morrer.
E o sangue corre gota a gota sobre a terra.
Vai morrer a gritar eu não quero morrer.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

Houve um que se deitou e disse: Até amanhã.
Mas amanhã é o dia em que se enterra
o soldado que disse: Até amanhã.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

E um jeep corre pela noite dentro.
Avança não avança? Emperra não emperra?
Passam balas de chumbo nas balas do vento.
Metralhadoras cantam a canção da guerra.

E há duzentos quilómetros de morte
em duzentos quilómetros de terra.
Neste caminho de Luanda para o Norte
metralhadoras cantam a canção da guerra.

Manuel Alegre

Espertalhota: loca

Etiquetas:

sábado, julho 22, 2006

22 de Julho - Citação do Dia

As casas onde se entra a descer têm sempre um encanto de gruta ou lapa: e ali é, realmente, o começo do mistério.

José Rodrigues Miguéis, A Escola do Paraíso

Etiquetas:

quarta-feira, julho 19, 2006

19 de Julho - Citação do Dia

Leio e estou liberto. Adquiro objectividade. Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo meu que malvejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável, o sol que vê todos, a lua que malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a solidez negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas.

Leio como quem abdica. E, como a coroa e o manto régios nunca são tão grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmaras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a escadaria com a única nobreza de ver.

Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos, nos que, se sofrem, o não dizem, que me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino, contemplador sem razão do mundo sem propósito, Príncipe do Grande Exílio, que deu, partindo-se, ao último mendigo, a esmola extrema da sua desolação.

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego

Espertalhotes: joana, papalagui, neptumância

Etiquetas:

domingo, julho 16, 2006

16 de Julho - Citação do Dia

Para lá de todos os sistemas e doutrinas, jamais como hoje se pôde recusar o princípio da dignidade humana. Se os sistemas são válidos na medida em que a promovem, eles deixam de o ser na medida em que a esquecem.

Vergílio Ferreira, Conta-Corrente 2

Etiquetas:

sábado, julho 15, 2006

15 de Julho - Citação do dia

O Soldado Morto

Os infinitos céus fitam seu rosto
Absoluto e cego
E a brisa agora beija a sua boca
Que nunca mais há-de beijar ninguém.

Tem as duas mãos côncavas ainda
Da possessão do impulso de promessa
Dos seus ombros desprende-se uma espera
Que dividida na tarde se dispersa.

E a luz, as horas, as colinas
São como pranto, em volta do seu rosto
Porque ele foi jogado e foi perdido
E no céu passam aves repentinas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Espertalhota: papalagui

Etiquetas:

quinta-feira, julho 13, 2006

13 de Julho - Citação do Dia

A vida de um homem é sempre mais pesada, e também mais leve, sempre mais ampla, do que a avaliação dela feita por outro.

Dinis Machado, O Que Diz Molero

Etiquetas:

quarta-feira, julho 12, 2006

12 de Julho - Citação do Dia

Meu casto,
puro amor provinciano,
não percas tempo
acendendo velas
no teu oratório:
nenhum santo
nem eu
estamos na disposição
de fazer o milagre
do teu casamento

Eugénio de Andrade

Etiquetas:

segunda-feira, julho 10, 2006

10 de Julho - Citação do Dia

Os guizos têm as suas virtudes, parecem cantar eternamente a mesma música e, bem escutados, bem percebidos, cantam tudo o que se quiser. É só ajeitar o ouvido, forçar um pouco a memória para as cantigas de que se gosta.

José Cardoso Pires, O Hóspede de Job

Etiquetas:

sábado, julho 08, 2006

8 de Julho - Citação do Dia

O dia da criação

Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.
Hoje é sábado, amanhã é domingo

Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.

Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.

Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado

Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas em queda invisível na terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda e missa de sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

Vinicius de Moraes

(Com um 'obrigada' à Bikovska)

Espertalhota: papalagui

Etiquetas:

quinta-feira, julho 06, 2006

6 de Julho - Citação do Dia

A pobreza e o sofrimento só enobrecem quando são voluntários. A pobreza e o sofrimento involuntários só podem tornar piores os homens. É mais fácil a um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um homem involuntariamente pobre entrar no reino dos céus.

Aldous Huxley, Também o Cisne Morre

Etiquetas:

segunda-feira, julho 03, 2006

3 de Julho - Citação do Dia

No rarear dos deuses e dos mitos
Deuses antigos, vós ressuscitais
Sob a forma longínqua de ideais
Aos enganados olhos sempre aflitos.

Do que vós concebeis mais circunscritos,
Desdenhais a alma exterior dos ritos
E o sentimento que os gerou guardais.

Para além dos seres, ao profundo
Meditar, surge, grande e impotente
O sentimento de ilusão do mundo.

Os falsos ideais do Aparente
Não o atingem - único final
Neste entenebrecer universal.

Fernando Pessoa

Espertalhote: eduardo

Etiquetas:

sábado, julho 01, 2006

JUNHO - ESPERTALHOTA DO MÊS

Este mês houve menos: menos posts, menos fregueses, menos palpites, menos espertalhotes. Estou seriamente a pensar numa estratégia de marketing qualquer para atrair freguesia, mas por enquanto não me ocorre nada. Em todo o caso entre a clientela fiel, aquele eixo mafra-londres-alcochete-porto-ponta delgada, destaca-se, como sempre, essa Ronalda dos palpites, a espertalhota deste mês:

Joana!

Etiquetas: